Festa Junina à Fantasia. Era só o que dizia no convite. Além de data, hora e local, claro. Bom, para mim, toda festa caipira era uma festa à fantasia. Mas um amigo, que conseguiu botar meu nome na lista aos 48 do segundo tempo, explicou, meio que de má vontade, que era para se vestir de caipira com “algo mais” (?!). Desliguei o telefone ainda tentando organizar as sinapses. Tá, entendi. Como já passava das onze, tive de improvisar: camisa xadrez (quem não tem?), calça jeans rasgada no joelho (bendito movimento grunge) e bota sete léguas (tá bom, é bota de trekking, mas é bota, tá valendo). Opa, uma gravata toda torta e com estampa pouco discreta dá o toque final. E o tal “algo mais”? Simples: ao invés de pintar o tradicional bigode de caipira, empinei as pontas para cima e virei um Dali do sertão. Nem o próprio teria imaginado algo tão surreal.
Encontro pouquíssima gente conhecida, tudo para potencializar a sensação de ridículo. Pego um quentão servido na barraquinha do Frankenstein caipira e quase derramo num Teletubbie caipira. Flerto com uma Mulher Gato caipira, quando então sinto o cano de um revólver em minhas costas: “My name is Bond, Jeca Bond”, e assim surge saltitante meu amigo do “algo mais”, vestido num smoking cheio de remendos. Ele me abraça, rindo e cuspindo quentão ao dizer que vai me levar pro altar. Chegamos no meio de uma pista onde rola uma mistura de rave com dança de quadrilha. Entra uma versão de Marilyn Manson vs White Zombie para “Like A Virgin” e surge um padre de cabelo moicano. Meu “amigo” apenas aponta em minha direção e fala algo ao ouvido do sacerdote punk. Demoro a me dar conta e daí não há mais tempo para fugir: sou pego para ser o noivo do casamento caipira. Claro, sempre é mais divertido ver um tímido pagando mico. Por sorte, a celebração é rápida: eu ao lado de uma caipira com máscara de carnaval de Veneza. O som é alto demais e tenho de gritar o “ssiiiiimmmmm!!!” umas cinco vezes. Por fim, a troca das alianças (daquelas de plástico, que vêm grudadas de brinde na maria-mole) e... o beijo. Meu amigo me olha com cara de “me deve uma”. Duas horas depois, estamos relaxados em nossa noite de núpcias no banco traseiro do carro dela. Por trás da máscara, aqueles olhos parecem querer dizer algo romântico...
- Você tem cigarro?
- Você fuma?
- Não, só queria fazer a cena clássica.
- E perguntar “foi bom pra você”?
- Não precisa. Pra você eu sei que foi ótimo.
- E pra você?
- Você não se saiu muito bem aqui na parte traseira.
- É que aqui é apertado.
- Não tô falando do carro.
Silêncio.
- Não vai tirar sua máscara?
- Eu não, você não tirou a sua.
- Mas eu vim sem máscara...
- Você é que pensa.
- Você parece ser muito sincera.
- Muito.
- Qual seu nome?
- Adivinha.
- Cleonice.
- O que?!
- Esquece, eu erraria de qualquer jeito. No que você trabalha?
- Adivinha.
- (suspiro) Trabalha na área de comunicação.
- Como todo mundo.
- Você é jornalista.
- Se for, a manchete de amanhã será: “Einstein bate Dali no sexo oral”.
- Você transou com um Einstein caipira?
- Não. Ninguém veio de Einstein, só lembrei da língua.
- Você não é jornalista.
- Quero alguma coisa pra beber.
- A gente vai se ver de novo?
- Quero um Johnny Walker duplo, você tem?
- Amanhã eu consigo o que você quiser.
- Ô, tédio.
- Você é casada.
- E se for?
- A camisinha estourou...
- Já ouviu falar de dil?
- É uma coisa proibida pelo Papa.
- Atentar contra os direitos humanos também é.
- E o que tem a ver?
- É direito humano meu não querer ter um rebento seu.
- Rebento?!
- Rebento.
- Pra você foi apenas sexo?
- Sexo nunca é “apenas”, meu querido.
Ela precipita o corpo entre os bancos da frente e liga o som.
- John Coltrane?
- Não gosta, problema seu.
- Por que não ligou o som antes pra gente transar com música?
- Porque preferi ouvir você falar sacanagem.
- Mas eu não falei sacanagem.
- Pois é... sacanagem.
Silêncio.
- A gente vai se ver amanhã?
- Você já perguntou.
- E você não respondeu.
- Amanhã é quarta, dia de sexo.
- Amanhã é domingo.
- É segunda, porque já passou da meia-noite.
- Mas continua não sendo quarta.
- Você me deixou confusa.
- Por que os outros dias da semana não são dias de sexo?
- Quem disse que não são?
- Olha, só me diz seu telefone então.
- 9119-9169.
- É seu mesmo?
- Não, é do meu ex-namorado?
- Ãhn!?
- Só pra ele atender um monte de homens perguntando por mim.
- Você o ama?
- Como poderia? Você não disse que eu era casada?
- Eu perguntei.
- E eu não respondi.
Silêncio.
- Deixa pelo menos eu tirar uma foto contigo.
- Não, eu não sou fotogênica. Prefiro tirar a foto. Quer que tire uma sua?
- Sozinho? Não, obrigado. Pra isso eu tenho espelho.
Sem mais nem menos, ela então puxa a minha gravata e guarda no decote.
- Tá bom, eu troco minha gravata contigo.
- Isso não é uma troca, é um roubo, meu filho.
- Você é obsessiva ou compulsiva?
- Abrasiva.
- Que fantasia é essa sua?
- Quem disse que é fantasia?
- A minha é.
- Sério? Pensei que era um modelo da Hugo Boss.
Novo silêncio.
- Dá uma pista então.
- Minha mãe é esteticista, serve?
- Claro. Vou vasculhar a lista telefônica amanhã.
- Quem disse que ela mora aqui?
- Tá... outra pista então.
- Deus, a paixão e a morte. Tá bom assim?
- Hmmmm... qualquer pessoa que não tenha a ver com nenhum desses itens eu elimino?
- Isso mesmo.
- Você veio com alguma amiga pra festa?
- Eu trouxe a Hilda?
- Onde ela tá?
- No porta-luvas.
Olho para o porta-luvas, vou até ele e vasculho-o.
- Hilda é esse novo lubrificante íntimo aqui?
- Quem disse que eu vim nesse carro?
- Pensei que era seu.
- Não.
- É da Hilda?
- A Hilda morreu.
- Olha, chega. Fala alguma coisa a sério. Qual seu hobby?
- Gosto de política.
- Dá pra falar sério, por favor.
- E de sabonetes também.
- Por favor...
- Pergunta o que eu não sou.
- Tá, o que você não é?
- Você.
- Chega.
- Eu falei sério.
- Quero algo mais sério.
- Olha: meus peitos não são de silicone.
- Eu percebi.
- Onde você vai?
- Vou embora, tá quase amanhecendo, vão ver a gente aqui.
- É domingo.
- Que é que tem?
- No domingo eu fico mais analítica.
- E...
- E o que?
- Você é psicóloga?
- E quem não é?
- Eu sou paciente.
- E quem não é?
- Por que você tem mania de responder uma pergunta com outra pergunta?
- Eu?
- Chega, deu.
- Desculpe, eu sou estabanada mesmo.
- Percebi.
Olho para fora e, mentalmente, fico fazendo contagem regressiva para abrir a porta.
- Tá, se você acertar meu nome, eu confesso tudo que você quiser.
- Carla.
- Muito simples.
- Mônica.
- Tá me achando dentuça?
- Camila.
- Que nem a música?
- Que música?
- “Camila-a-aaaaa, ouuu...”.
- Isso.
- Também é muito simples.
- Vanessa.
- Você só tem nomes simples na cabeça?
- Edilmery.
- Escrachou, né?!
- Lizie.
- Com “i” ou “y” no final?
- Com “e”.
- Complicou, hein.
- Aliane.
- Cuma?
- Tá, deixa. Hmmm... Sabrina.
- A feiticeira?
- Não é Tabata o nome?
- Não, Tabata é a filha.
- Eu pensei que era Samantha.
- Hmmm... acho que você confundiu.
- Tá, que seja... ei, mas você não disse nem que sim nem que não pra nenhum nome!
De repente, entra um Mutantes no som do carro.
- “Desculpe babyyyyyyy, não vou ficar com vocêêêêêêê...”.
Era a deixa que faltava. Puxo a gravata do decote dela e guardo no bolso da minha calça. Saio, fecho a porta do carro e caminho esfregando os braços, já com o sol arranhando o verde úmido do jardim. Ando até meu carro, passando por entre piratas jecas e diabinhas caipiras, esparramados por bancos e pufs. Não sei se pelo lirismo da alvorada, ou se pela embriaguez da conversa, mas chego no meu carro e escrevo com o dedo na fina película de orvalho que cobre a janela: “jamais conseguirei dobrar a alma origami desta menina de papel”.
Meninas de Carne
Você é ou conhece a garota da foto? Então, manifeste-se.
Se não conhece a figura, tente identificá-la no meu Orkut: http://www.orkut.com/Profile.aspx?uid=13286287392859360604.
A primeira pessoa que responder corretamente seu nome e sobrenome nos comentários, deixando ali algum canal para contato, ganhará um DVD do filme “Dermografia”, que tem minha concepção, roteirização e assistência de direção (estréia em breve no cinema).
Texto e foto: Mario Lopes